Destacamento Blood (2020)

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Destacamento BloodDestacamento Blood pode ser encontrado na sessão “Aclamados pela Crítica” do Netflix. Não entendo muito os critérios da plataforma para relacionar filmes (não sei com vocês, mas os ‘Feitos para Você’ que aparecem por aqui são bizarros 😆 ), mas desconfio que, nesse caso, a indicação deva-se ao pai da criança. Apesar de ter vencido apenas um Oscar (em 2019 de Melhor Roteiro Adaptado por Infiltrado na Klan), o diretor Spike Lee já foi homenageado pela Academia com um Oscar Honorário em 2016 pelo conjunto de sua obra e possui uma filmografia repleta de clássicos “aclamados pela crítica”, como Faça a Coisa Certa e Febre da Selva. O nome dele, resumindo, evoca trabalhos grandiosos e respeitados, seja pela execução, seja pela força da crítica social que realiza. Essa expectativa, no caso de Destacamento Blood, é bastante contraproducente: o que poderia ser apenas um filme de guerra “ok” torna-se uma decepção por levar o “pedigree Spike Lee”.

A história fala de um grupo de soldados negros veteranos que decide retornar ao Vietnã para cumprir duas missões: encontrar e sepultar os restos mortais de um antigo amigo (Norman, vivido em cenas de flashback por Chadwick Boseman) e desenterrar uma mala repleta de ouro que eles esconderam durante a guerra. É assim que Paul (Delroy Lindo), Otis (Clarke Peters), Melvin (Isiah Whitlock Jr.) e Eddie (Norm Lewis) reencontram-se no sudeste asiático, num clima inicial de nostalgia e camaradagem, e contratam um guia para leva-los novamente até o coração da selva. Antes de partir, o grupo é reforçado pela chegada do filho de Paul, David (Jonathan Majors), e negocia a venda do ouro com um comprador misterioso (Jean Reno).

Destacamento Blood - Cena 3

Pelo que pode ser lido aqui, Destacamento Blood foi pensado inicialmente para contar a história de cinco soldados brancos. Como o diretor Oliver Stone desistiu de dirigir o projeto, ele foi oferecido ao Spike Lee, que reescreveu o roteiro de modo a abordar as questões raciais que lhe são caras, como a luta pela igualdade social entre negros e brancos e o racismo estrutural dos Estados Unidos. Em linhas gerais, a mão  de Lee no roteiro pode ser percebida em dois pontos:

  1. Na ótima introdução, uma espécie de “mini documentário” com edição frenética (um dos seus traços mais característicos enquanto cineasta) que usa imagens reais para relacionar Guerra do Vietnã e o Movimento dos Direitos Civis. No ponto alto desse início, Lee resgata a entrevista memorável do Muhammad Ali para argumentar sobre a discrepância entre a convocação de negros e brancos naquele momento. “Por que eles deveriam me pedir para colocar um uniforme, ir a dez mil milhas de casa e atirar bombas e balas nas pessoas marrons no Vietnã enquanto as pessoas chamadas de ‘nigger’ em Louisville são tratadas como cachorros e negadas de direitos humanos básicos”. Boa, Ali.
  2. Na ressignificação que é dada à “caça ao tesouro”, visto que, apesar de alguns personagens quererem o dinheiro para fins pessoais, há uma discussão entre eles sobre o propósito social da missão, que deveria ser garantir recursos para que a luta dos negros por direitos, igualdade e dignidade continuasse.

Essas questões, somadas ao estresse pós-traumático de Paul, dão profundidade à trama e impedem que ela seja “apenas mais um filme de guerra”. Ponto para o diretor, que também precisa ser parabenizado pela edição caprichada (adoro quando ele introduz fotos para ilustrar personalidades que são citadas pelos personagens), pelas referências cinematográficas (o óbvio Apocalypse Now! aparece no nome de uma boate e na execução da Cavalgada das Valquírias do Wagner) e pela crueza e brutalidade de suas cenas de ação (acho que nem o Tarantino explodiu alguém com tanto sangue e estilo quanto o Spike Lee explode com uma mina terrestre nesse filme). Os elogios, porém, acabam aqui.

Destacamento Blood - Cena 1

Se a edição é bacana pelos malabarismo técnicos e pelo tom documental, ela também é falha por permitir que a versão final do material ultrapasse 2h30min. Destacamento Blood é muito longo e não justifica essa duração pois, além de sua história ser relativamente simples, o filme não usa desse tempo extra para desenvolver satisfatoriamente as subtramas de seus muitos personagens (o foco, claramente, está no estressadão Paul).

Outro ponto que não me agradou foi a forma simplória como algumas questões são solucionadas pelo roteiro, e aqui cito dois exemplos para me fazer entender:

  1. A cena em que a tal “mala de ouro” é encontrada. Os personagens estão andando, no meio do nada, já desanimados com a procura, daí um deles afasta-se para fazer “o número 2” e…. “Achei, pessoal!”. Assim, simples assim.
  2. O encontro deles, extremamente providencial, com um grupo de especialistas em desarmar minas terrestres bem no momento em que eles precisavam…. desarmar uma mina terrestre.

Entenderam? Filmes como o clássico Vício Frenético são lembrados (e tornam-se legais) por seus finais estilo deus ex machina (um recurso teatral que consiste em dar uma resolução inverossímil para algum problema), mas não parece ser essa a intenção aqui. Devido a seriedade do longa e sua pegada mais documental, fiquei com a impressão que os pontos levantados são meros descuidos do roteiro.

Esses tipos de problema (sentir tédio com a trama arrastada, questionar as soluções fáceis da trama) poderiam passar batidas numa produção de um diretor qualquer, mas não em um “filme do Spike Lee”. A sensação que tive (e que foi ‘confirmada’ pela informação que linkei acima) é que o diretor tentou dar forma para um material que não era dele, e o resultado foi um filme mediano que, por tudo que esperamos de um cara como ele (um sujeito ‘aclamado pela crítica’ 😆 ), deixa a gente meio desapontado. É uma pena.

Destacamento Blood - Cena 2

A Vida de Emile Zola (1937)

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A Vida de Emile ZolaEste é o 10º texto que escrevo desde que voltei pra cá há um mês. Estou feliz 🙂

Antes de dar um tempo no blog, eu estava tentando assistir todos os vencedores do Oscar de Melhor Filme. Parei no O Grande Motim (de 1935) e, enquanto estive afastado, vi apenas o Ziegfeld, O Criador de Estrelas, cinebiografia  de um magnata do show business norte-americano que conta com sequências grandiosas de dança e cantorias mas que certamente poderia ter uma duração menor (haja paciência para um musical de 2hrs56min!). Dou sequência agora nesse “mini projeto” com A Vida de Emile Zola, vencedor da categoria em 1938 (ainda levou Melhor Roteiro e Melhor Ator Coadjuvante) que trata da vida do importante escritor francês.

O quê? Vocês não conhecem o Emile Zola? Isso é porquê vocês não estudaram história no Neuza Rezende, melhor escola do Brasil. Lá, no quarto bimestre do 2º ano do Ensino médio, os aluno tem aula de “Europa: entre o Romantismo e Belle Époque”, momento em que falo sobre os estilos literários e artísticos que dominaram a cena europeia do fim do século XIX até o início da Primeira Guerra Mundial. É aí que, ao comentar sobre o Naturalismo, cito o Emile Zola e seu livro Germinal, de 1885, como exemplo da corrente que radicalizou o Realismo ao substituir a linguagem sentimentalista e nostálgica do Romantismo por uma narrativa mais concreta que trazia descrições detalhadas de aspectos mórbidos e brutais (incluindo fenômenos patológicos e sexuais) da vida dos pobres. É uma boa aula.

É esse mesmo Emile Zola que vemos aqui percorrendo uma  trajetória que vai desde os dias pobres do anonimato até a consagração como um dos maiores escritores de seu tempo. O filme do diretor William Diertele foca “mais no homem e menos no escritor”, reservando o clímax para a participação de Zola no debate sobre o famoso “Caso Dreyfus”. Esta abordagem pouco pedagógica distancia-o da sala de aula (não acho que ele sirva para ilustrar Naturalismo), mas não compromete a sessão de quem procura um daqueles filmes edificantes de tribunal em que a justiça prevalece pela força da verdade e dos bons argumentos.

A Vida de Emile Zola começa com seu protagonista, que é vivido de forma espetacular pelo ator Paul Muni, passando por uma série de dificuldades financeiras que fazem-no questionar a forma como a sociedade de seu tempo está organizada. Antes de escrever Nana, o best-seller que catapultaria sua carreira, Zola pula de serviço em serviço, sempre sendo dispensado devido as suas opiniões controversas sobre temas como política e moral.

A Vida de Emile Zola - Cena

O sucesso vem, Zola escreve vários livros aclamados pela crítica (a montagem que mostra suas obras saindo, ano após ano, é um dos momentos visualmente mais inspirados da trama) e, pouco a pouco, ele vai afastando-se das lutas que pavimentaram seu caminho como escritor. Há poucos paralelos entre o Zola que descreveu com exatidão os sofrimentos dos mineiros de carvão da França no século XIX em Germinal (detalhe: esse livro foi um dos primeiros que a ex-presidente Dilma Rousseff ganhou do pai, sendo um dos responsáveis por sua iniciação política) e o Zola que, no mercado, diverte-se escolhendo com propriedade qual tipo de lagosta é melhor para o consumo. É aí que estoura o tal “Caso Dreyfus”, reconectando-o, já próximo do fim da vida, com sua origem militante e questionadora.

O capitão Alfred Dreyfus (Joseph Schildkraut, em atuação que lhe rendeu o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante) é acusado injustamente de ser um espião do Império Alemão. Sumariamente julgado por uma corte militar, ele é condenado à prisão, publicamente humilhado com a perda de suas distinções e títulos militares e enviado para a longínqua Ilha do Diabo (Guiana Francesa). Sua mulher, Lucie Dreyfus (Gale Sondergaard), inicia uma campanha pública pela libertação do marido, insistindo em sua inocência. Acomodado em sua vida confortável, inicialmente Zola mantém-se afastado do caso, mas a insistência de Lucie faz com que ele tome partido e escreva uma carta dura ao presidente da França, sob o título de “Eu acuso” (J’Accuse, no original francês), cobrando a revisão do julgamento e da sentença de Dreyfus. O caso ganha repercussão nacional e Zola também é julgado por difamação.

A Vida de Emile Zola - Cena 2

Em sua primeira hora, A Vida de Emile Zola é dedicado à ascensão do escritor e à encenação da trama de traição militar que envolve Dreyfus. Focando, como dito, “mais no homem e menos no escritor”, o diretor William Dieterle perde a chance de mostrar coisas legais, como a experiência antropológica que Zola experimentou para escrever o Germinal (ele passou alguns meses vivendo com os trabalhadores de uma mina de carvão para colher dados para construir seus personagens). É um início corrido, com passagens de tempo que cobrem grandes períodos da vida do escritor sem muitas explicações, e isso torna a adaptação da parte literária um pouco frustrante. Na segunda metade, porém, o filme cresce muito, e não há dúvidas de que seus melhores momentos sejam a leitura da carta “Eu Acuso” e a defesa que Zola faz de si mesmo no tribunal em um poderoso monólogo que dura cerca de 6 minutos num maravilhoso plano sequência.

Não usarei A Vida de Emile Zola em sala de aula (seguirei exibindo um trecho da adaptação do Germinal de 1993 estrelada pelo Gerárd Depardieu), mas assistindo-o é fácil perceber o porquê dele ter ganhado o Oscar de Melhor Filme.

A Vida de Emile Zola - Cena 3

 

Cargo 200 (2007)

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Cargo 200Em conversa recente com o amigo Antônio Carlos Sandoval, o “Nash”, pedi indicação de um “filme europeu bad vibe estilo A Menina da Fábrica de Fósforos. O cara, que é formado em cinema e tem opiniões sempre contundentes sobre o assunto (ele acha o recente 1917 ‘zoado’ e considera O Menino do Pijama Listrado um desserviço ao Holocausto), me indicou não um, mas dez filmes nessa pegada aí. Cargo 200, que ele colocou no topo da lista, foi descrito como “o mais pesado e doente que ele viu na vida”. Tentador, não? Não? Bem, antes de falarmos sobre o “porquê” assistir esse tipo de material, vamos tirar a sinopse do caminho.

Baseado em fatos reais e ambientado na União Soviética da década de 80, Cargo 200 explora temas pesados como sequestro, assassinato, estupro e corrupção estatal no seio daquela que foi a maior experiência socialista da história. Tudo começa quando o jovem Valera (Leonid Bichevin) dá o famoso “perdido” na namorada e, despedindo-se com a promessa de ir pra casa dormir, deixa-a e vai direto para uma festa. Chegando no local, um desses inferninhos estranhos com gente esquisita, Valera encontra uma amiga de sua namorada, Angelika (Agniya Kuznetsova). Vagabundo de marca maior, ele investe na moça e convence-a a acompanhá-lo até uma propriedade rural onde seria possível conseguir “bebida boa e barata”. Lá, Valera desmaia após um porre épico e deixa Angelika à mercê de Zhurov (Aleksey Poluyan), um homem doentio que revelará-se oficial de justiça e fará a personagem vivenciar terrores inimagináveis.

De fato, tal qual o meu amigo descreveu, Cargo 200 é muito “pesado e doente”. Não diria que ele é o pior que já vi na vida (esse posto, espero, será sempre do A Serbian Film), mas ele tem no mínimo umas 3 cenas que fazem a gente questionar e lamentar a existência da humanidade. Optando por assistir, é bom que vocês estejam preparados para ver coisas como uma mulher sendo violentada com uma garrafa, estupro coletivo e um cadáver putrefato sendo jogado na cama ao lado de sua antiga noiva (daqui, aliás, vem o título do filme: Cargo 200 é um código militar utilizado, entre outras coisas, para transporte de corpos de combatentes mortos). “E por que eu veria isso?” Bem, posso responder apenas por mim.

Cargo 200 - Cena 2

A vida, como toda sabem, é uma tremenda montanha-russa emocional (esse filme, aliás, também é russo e assinado pelo diretor Aleksey Balabanov): há altos e baixos, tem dias que a gente está bem, dias que a gente está mal e todo aquele blablabla que todo mundo está cansado de saber. Já foi-se a época em que, nos dias ruins, eu recorria ao álcool: ressaca, tanto física quanto moral, é ruim demais e a minha carcaça, neste momento prestes a completar 35 anos, já não suporta mais os abusos etílicos. Resta-me, portanto, expurgar minhas fossas emocionais com arte, assistindo “filmes bad vibe” como esse Cargo 200. Não sou sádico e tudo o que vi me causa repulsa, mas ao mesmo tempo vivenciar sentimentos como ódio, desespero e indignação dentro do ambiente relativamente seguro da ficção ajuda nas minhas catarses e na formação do meu caráter. A exemplificação de várias situações desconfortáveis que a arte fornece, ao meu ver, tanto nos faz olhar para a nossa própria vida com mais calma e sabedoria quanto auxilia o público a aprender algumas lições sem a necessidade da experiência empírica. Após ver Cargo 200, por exemplo, duvido que alguém seja capaz de reclamar de coisas menores (como o término de um relacionamento) ou vá aceitar o convite de um estranho para “ir conseguir bebida boa e barata”.

Cargo 200 - Cena 1

Isto posto, o filme ainda tem a seu favor a construção melancólica do canto do cisne soviético. Balabanov mostra uma Rússia cinzenta, triste, e perdida onde as grandes fábricas e a enorme estrutura estatal contrastam com a pobreza e a corrupção. Dois personagens chamam bastante atenção: o vilão Zhurov, respeitado capitão que comete obscenidades valendo-se de seus poderes enquanto agente público, e o professor Artem (Leonid Gromov), um ateu marxista que discursa longamente em uma cena defendendo o materialismo histórico e atacando os entraves morais que a religião coloca na sociedade, mas que mostra-se covarde e hipócrita quando convocado a levantar-se contra uma injustiça. O “final” desse professor, alias, é um dos maiores “tapas na cara” que o filme dá.

Cargo 200 será lembrado como um filme “pesado” devido a violência física e psicológica que Angelika sofre, mas é bom dizer aqui que o diretor também faz uso de um final brutal para punir Zhurov de maneira exemplar, o que dá um certo conforto pela ideia de que crime e castigo (como o também russo Dostoiévski defende em seu melhor livro) são faces da mesma moeda e sempre caminham  juntos. É bom, mesmo que deveras irracional, acreditar que ações boas são recompensadas e pecados são devidamente punidos, né? Eu acho.

Cargo 200 - Cena 3

Perversa Paixão (1971)

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Perversa PaixãoLivros abrem portas e minha mente curiosa tem passeado por várias delas. Já citei aqui que estou lendo o Sexta-Feira 13: Arquivos de Crystal Lake do David Grove, obra completíssima sobre o primeiro longa da vasta filmografia do serial killer Jason Voorhees. Em um capítulo que trata da construção dos personagens, Grove diz que o diretor Sean S. Cunningham pode ter baseado o visual e a personalidade da mãe de Jason, Pamela Voorhees, em Evelyn, mulher insana que persegue o astro Clint Eastwood no filme Perversa Paixão. Li, fiquei interessado, procurei o filme e cá estou, nesse belo domingo de manhã, desenterrando mais uma pérola do passado hollywoodiano pra vocês.

Dave (Eastwood) trabalha como radialista no turno da madruga da KRML, uma rádio de jazz de uma cidadezinha costeira qualquer dos Estados Unidos. Diariamente, ele atende a ligação de uma ouvinte, que lhe pede “Toque Misty para mim” (Misty, no caso, é uma canção deveras melancólica que tu pode ouvir clicando aqui).  Um dia, quando estava em um bar tomando um trago, Dave finalmente conhece sua fã: Evelyn (Jessica Walter) é uma mulher de meia idade bastante atraente graças ao seu cabelo curto e sorriso largo. Movimento natural, eles conversam, bebem juntos e terminam a noite nos braços um do outro. Todos ganham, todos ficam felizes.

Acontece que Dave é o que algumas pessoas chamam de “solteiro profissional”. Confortável em seu papel de homem solitário, no dia seguinte ao encontro ele já pode ser visto em sua casa completamente mergulhado em seus projetos profissionais. Um amigo chega no local e tenta convencer-lhe a sair à noite num encontro de casais (ele e namorada, Dave e uma nova moça que lhe seria apresentada), e é aí que Evelyn entra pela porta da cozinha e surpreende a todos. Carregando um monte de sacolas com coisas para fazer o almoço, ela não avisou que iria. Dave não estava esperando por ela. Daí em diante, a personalidade doentia e obsessiva da personagem vai tornando-se cada vez mais clara e Dave começa a ter uma série de problemas devido a isso, chegando a ter a sua própria vida colocada em risco.

Perversa Paixão - Cena 1

Perversa Paixão, além de ser um ótimo suspense estilo Hitchcock (personagem feminina forte, tensão crescente), é um filme importante porque marca a estreia do Clint Eastwood na direção. Em 1971, Eastwood já tinha uma carreira consolidada graças a sua trilogia de spaghetti western com o Sergio Leone e estava prestes a encarnar um de seus personagens mais icônicos, o justiceiro Dirty Harry da série que começa com Perseguição Implacável, mas ele ainda não havia estado atrás das câmeras, lugar que futuramente lhe renderia 4 Oscars (Melhor Diretor e Melhor Filme por Os Imperdoáveis e Menina de Ouro). Excluindo uma cena de sexo completamente desnecessária e cafona que ocorre lá pela 1h10min do filme (Dave e uma namoradinha transam no meio do mato, com cachoeira e tudo, ao som da brega The First Time Ever I Saw Your Face), dá pra dizer que, tecnicamente, o debut é bem bom, com bons jogos de câmera, tomadas aéreas incríveis (como aquela que abre o filme ) e uma direção de atores convincente. Não é sobre a parte técnica, porém, que eu quero comentar.

Não é de espantar que tenham baseado a Pamela Voorhees em Evelyn. A mulher é MUITO assustadora. No fim, inevitavelmente, a tensão entre ela e Dave desenvolve-se para a violência física, mas o que espanta mesmo não é ela pegar uma faca e tentar matar o cara que ela jurou amar: Evelyn é o tipo de ex que ninguém merece ter na vida, uma obra ambulante do capiroto capaz de tirar o sono de qualquer um. Tão logo o personagem deixa claro que, apesar de terem tido uma boa noite juntos, ele não pretende ter nada mais sério com ela, Evelyn torna-se inconveniente e passa a atormentá-lo de todas as formas possíveis, fazendo coisas que vão desde roubar a chave de seu carro até invadir uma reunião de serviço e ofender uma mulher com quem Dave negociava.

Perversa Paixão - Cena 2

Clint Eastwood, que é conhecido por seus personagens estilo macho man, homens solitários que falam pouco e agem friamente, leva o pobre Dave até o limite. Antes dele decidir dar um basta definitivo na relação, há várias tentativas de contornar os aparentes problemas psicológicos de Evelyn (vocês precisam ver como a personagem, graças ao talento da Jessica Walter, consegue transitar facilmente entre a gritos histéricos e a voz doce e apaixonada), mas a situação torna-se insustentável depois que um assassinato eleva o clima de absurdo da trama. É aí que entra em ação o Eastwood clássico, o “homem que faz o que um homem precisa fazer”, e o resultado é uma cena polêmica que traz alívio e tristeza ao mesmo tempo.

Perversa Paixão é indicação óbvia para quem gosta do Eastwood e para quem divertiu-se assistindo o mais conhecido Louca Obsessão, aquele clássico em que a Kathy Bates usa um martelo para remodelar os pés de um escritor. Ele também é bom para percebermos que, apesar dos pesares, estamos melhor do que muita gente por aí quando o assunto é “término de relacionamento”, visto que conseguimos manter nossa dignidade e não atormentarmos ninguém com perseguições e/ou joguinhos mentais dispensáveis.

Perversa Paixão - Cena 3

365 Dias (2020)

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365 DiasAqui está o filme sensação do momento. Perdi as contas de quantas menções sobre o mesmo vi em redes sociais e, em ao menos duas oportunidades, vi ele sendo debatido em grupos de whatsapp que participo. Até onde percebi, não há meio termo: tem uma galera que amou e uma que odiou. Como gosto de cinema e me interesso em saber o que está sendo produzido em todos os gêneros, optei por assistir para formar opinião. Desconfiei, pelo que li de antemão, que eu integraria o grupo dos que odiaram, o que de fato aconteceu, mas há uma ou outra qualidade aqui que precisamos reconhecer.

Saca só: Massimo (Michele Morrone) é um mafioso italiano do tipo macho alfa que, desde sempre, tem visões com uma musa misteriosa. Um dia, após usar seu poder e truculência para cobrar dinheiro de alguns empresários, ele conhece a polonesa Laura (Anna Maria Sieklucka), mulher que é exatamente igual àquela com a qual ele sonhava. Acostumado a pegar o que quer à força, Massimo sequestra Laura e a leva para sua mansão, dando a ela 365 dias para apaixone-se por ele.

É isso gente. Dá pra resumir o roteiro em uma frase: um brucutu sequestra uma mulher e dá um ano para que ela cai na lábia dele. Quando trata-se de crítica de cinema, principalmente aquela feita de forma rasteira em conversas informais, é bastante comum tu ver as pessoas dizendo que “o filme tal não tem roteiro” como argumento para detoná-lo. Na maioria das vezes, isso não é lá muito verdade (há quem diga isso, por exemplo, do Star Wars IX, que não é lá uma obra prima, mas que tem ‘roteiro’ sim), mas aqui estamos mesmo diante de um célebre caso em que a trama simplória é apenas um “mal necessário” para o objetivo da produção, que é conseguir um lugar ao sol explorando a luxúria que habita dentro de cada um de nós.

365 Dias - Cena 2

Sabe aqueles clipes (principalmente dessa recente onda de hip-hop norte-americano) em que o artista realiza sua performance num ambiente paradisíaco, repleto de corpos sarados, enquanto todos bebem bebidas caras e posam com roupas de marca e carrões turbinados? Nada daquilo está ali por acaso, tudo é milimetricamente pensado para que nós, gente comum, sintamos desejo, seja de consumir, de sermos fisicamente atraentes ou de termos alguma coisa daquela vida aparentemente perfeita. 365 Dias, que é uma produção polonesa e que também pode ser encontrado com o título de 365 DNI (no Netflix está assim), é isso, um longo videoclipe pensado para mexer com a nossa libido, e nisso ele é bastante competente. Ao longo de 1h54min, os diretores Barbara Bialowas e Tomasz Mandes exploram o poder de compra aparentemente infinito de Massimo (joias, roupas e sapatos caros, viagens) e sua invejável forma física para construir uma incrível tensão sexual entre ele e Laura. Ela, que inicialmente resiste às investidas de seu captor, acaba entrando no jogo da sedução proposto por ele e também eleva a temperatura exibindo o corpo escultural em lingeries e vestidos que deixam pouco para a imaginação. Entre uma e outra cena, baladas açucaradas cantadas por vozes sussurrantes completam o clima de romance e sexo da trama.

O ápice do filme, lógico, é o momento em que o casal cede ao desejo e testa metade das posições do Kama Sutra num barco luxuoso em alto mar. É PÁ, é POW, é PLIC, é PLOC, parece que a energia deles nunca acaba. Tudo muito bonito, tudo muito legal, mas, consumado o ato pelo qual a gente espera quase uma hora e meia pra ver, vem a costumeira reflexão pós-coito e percebemos o óbvio: o filme é ruim demais. O roteiro, além de simplório, caminha sem nenhum tipo de reflexão para uma perigosa Síndrome de Estocolmo e nada, nada mesmo fora a tensão sexual entre os protagonistas recebe a devida atenção. Questões como o relacionamento anterior de Laura, a morte do pai de Massimo, seus inimigos e sua estranha obsessão por uma musa idealizada são apenas jogadas na tela entre uma e outra cena de vuc-vuc.

365 Dias - Cena

A parte técnica, aliás, não é das melhores também. Bem no início do filme, quando Massimo decide aliviar a tensão de uma viagem de jatinho com a comissária de bordo, tem um detalhe bizarro. Enquanto alterna a câmera entre o rosto do personagem e o da moça (que está de joelhos lhe fazendo sexo oral), os diretores mostram o que parece ser a visão parcial de um pênis. Notei, porém, que algo estava estranho. Voltei a cena, pausei “no momento exato” e foi aí que tive um susto: a mulher estava chupando uma prótese! (Clique aqui, por sua conta e risco, caso tu queira comprovar o que estou dizendo). É muito amadorismo, caras.

365 Dias pode até te inspirar a comprar umas roupas legais (gostei do estilo do cara se vestir), querer ter um corpo legal e/ou aquecer uma noite de segunda feira daquele casal que já está mais pra lá do que pra cá. Ele pode te fazer sonhar com uma vida de viagens e ostentação que, provavelmente, tu nunca terá. Ele pode ser utilizado como uma válvula de escape num momento em que todo mundo tá meio que surtando em meio a uma pandemia mundial. Ele também pode e deve ser visto como o que ele é: um filme sem pé nem cabeça, sem eira nem beira, que abre mão de contar uma história minimamente coerente em troca de manipular os hormônios do público. A Polônia, que na Segunda Guerra Mundial enfrentou bravamente a moderna Wermacht nazista utilizando quase que exclusivamente sua cavalaria montada, não merecia essa vergonha.

365 Dias - Cena 3

Sombras da Vida (2017)

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Sombras da VidaApesar do poster e do título sugestivos, este não um filme de terror, tão pouco de suspense. Trata-se de um surpreendente drama com pitadas de romance, uma joia rara que chegou até mim graças a indicação de um amigo. Como o roteiro (principalmente o final) é bastante aberto para interpretações, aconselho a leitura do texto apenas caso tu já tenha assistido o filme ou não importe-se com SPOILERS, ok?

Há um casal em uma pequena casa de uma cidadezinha do interior. “M” (Rooney Mara) quer mudar-se para um local maior e mais movimentado, mas “C” (Casey Affleck) recusa-se. Eles discutem por isso. Na madrugada do dia em que “C” cede aos desejos de sua companheira, eles são repentinamente acordados por um inexplicável barulho vindo do piano da sala. Na manhã seguinte, “C” morre em frente de casa em um acidente de carro.

A forma minimalista que o diretor David Lowery conduz os 10 primeiros minutos desta história, mostrando abraços prolongados, risos e diálogos íntimos do casal nos arrasta emocionalmente para uma das cenas mais tristes e visualmente impressionantes do filme. Chamada até o hospital após o acidente, “M” fica parada por alguns instantes ao lado do corpo sem vida do marido e, após cobri-lo com um lençol, deixa o local. Somos então abandonados naquela cena, junto com o cadáver, por exatos 1min30seg em que nada, absolutamente nada, acontece. A câmera estática do diretor, posicionada em um canto da sala, então finalmente mostra “C” levantando da cama. “Ele está vivo?”, pensamos instintivamente, mas a resposta é rápida e visualmente desconcertante: tal qual nos desenhos voltados para o público infantil, “C” não apenas morreu como transformou-se em um fantasma, com o corpo coberto por um lençol furado na região dos olhos e tudo mais.

Antes que tenhamos tempo de nos acostumarmos com essa inesperada escolha estética, o fantasma de “C” sai do hospital e vaga de volta até a casa que ele dividia com “M”, atravessando para tanto um longo caminho composto de paisagens bucólicas em outra cena acachapante: aqui, visual e som unem-se para criar uma sequência ímpar em que beleza e tristeza misturam-se e tornam-se poesia cinematográfica do mais alto nível.

Sombras da Vida é uma releitura, por assim dizer, da trama da “casa assombrada por um fantasma”, já que é exatamente isso que “C” faz ao retornar para o local. No início do texto, porém, eu disse que “trata-se de um drama com pitadas de romance”, certo? Explico agora: não há sustos e nem pessoas sendo assassinadas pelo espírito vingativo do protagonista ao longo da 1h30min do filme. Ao regressar ao lar, “C” faz o que todo mundo certamente já pensou um dia em fazer: ele vaga, de um cômodo para o outro, observando inerte como sua amada está vivendo após sua morte. É muito triste, mas não deixa de ser tocante ver como o casal lida com aquela partida abrupta, ele não conseguindo encontrar a paz pós-morte devido ao sentimento que ainda persistia, ela definhando física e psicologicamente pela perda antes de conseguir encontrar forças para seguir a vida. Em outra cena em que a câmera estática mostra-se poderosa, “M” senta-se no chão e, durante longos 4 minutos, devora uma torta inteira, parando apenas quando o gesto de desespero a obriga correr até o banheiro para vomitar.

Sombras da Vida - Cena 1

O sentimento era verdadeiro mas, sabedoria popular, o tempo cura tudo. É assim que “C” observa “M” ir se recompondo até o dia em que ela aparece na casa com outro homem e, na sequência, muda-se do local. Antes de sair, ela escreve um bilhetinho e guarda-o em uma fresta na parede. Saber o que está escrito naquele papel torna-se uma obsessão para o espírito de “C”, que passa a expulsar os novos moradores que mudam-se para a residência (usando truques como derrubar objetos e fazer as luzes piscarem, nada potencialmente amedrontador) visando a oportunidade de ficar sozinho para resgatar o bilhete.

Os anos passam, várias famílias vem e vão (em outra cena digna de nota, numa festa, um personagem realiza um monólogo desalentador sobre como toda a forma de vida está fadada a morte e ao esquecimento, sendo que apenas a arte teria o poder de tornar-se imortal) e o diretor David Lowery dá outro nó na nossa cabeça. Num futuro distante em que a casa já foi demolida e cedeu lugar a um moderno arranha-céus (fazendo o bilhete perder-se no processo), o espírito de “C” salta do alto de um prédio e retorna ao passado, mais especificamente quando colonizadores americanos chegaram naquelas terras e construíram a casa. Lá ele aguarda pacientemente o passar dos anos até que (é aqui que a cabeça trava) “M” e “C” mudam-se para o local, vivem suas vidas, discutem sobre ir para outro lugar, ele faz o barulho no piano que ouvimos no início do filme, “C” sai no dia seguinte, morre, “M” vive seu luto e, finalmente, muda-se outra vez, deixando lá o bilhete que havia sido perdido na outra linha temporal. Complexo, né? O espírito de “C” consegue então resgatar o bilhete e, ao lê-lo, o “lençol” cai no chão, indicando que finalmente ele descansou. É o fim do filme.

Sombras da Vida - Cena 2

A grande questão que fica é: “O que estava escrito no bilhete?” Não há uma explicação definitiva. Bem no início, “M” diz que, quando era criança, ela costumava deixar bilhetes nas casas das quais ela mudava-se para que, se um dia retornasse, ela pudesse entrar em contato com uma parte dela, com parte de seu passado. Quando perguntada por “C” sobre o conteúdo dos bilhetes, ela diz que eram “velhas rimas e poemas, coisas que ela queria lembrar-se sobre morar naquela casa ou coisas que ela gostava no lugar”. Esta é a dica mais concreta que o filme nos dá. O meu palpite (e é por isso que quis escrever a resenha com SPOILERS, para poder dar a minha versão) é que ela escreveu algo relacionado a música que “C” compõe para ela num trecho do filme. Digo isso pois:

  • o flashback da cena que a música é executada antecede a decisão dela de mudar-se da casa;
  • a letra da canção fala sobre a fase conturbada do relacionamento deles;
  • O monólogo da festa que diz que só a arte é imortal cita uma música (a Nona Sinfonia do Beethoven) como exemplo de algo que seria capaz de atravessar o tempo e dar esperança para as pessoas;

Se estou certo ou errado, não importa. Teorizar sobre esse final aberto é só um dos prazeres que Sombras da Vida fornece. A releitura tocante e poética do gênero deveras batido da “casa assombrada” é maravilhosa e tornam esse filme indicação certa para quem está procurando algo diferente e sentimental para assistir. Adorei.

Sombras da Vida - Cena 3

Excalibur (1981)

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Excalibur“A popularização da Idade Média nas últimas quatro décadas teve como marco o sucesso de filmes como Excalibur, do diretor inglês John Boorman, e o próprio O Nome da Rosa – o qual, aliás, contou com a consultoria de Jacques Le Goff, um importante medievalista”.

A citação é do História Medieval, livro do Marcelo Cândido da Silva que terminei de ler há pouco tempo. Ao longo de 155 páginas, o professor da USP passa por temas como Invasões Bárbaras, Império Carolíngio, Feudalismo, Cruzadas, Peste Negra e Guerra dos Cem Anos e termina fazendo uma análise sobre a forma como enxergamos a Idade Média atualmente. Segundo ele, a visão tradicional, ou seja, a da “Idade das Trevas” (torturas, fome, intolerância religiosa, misticismo, submissão da mulher e guerras) tem sido aos poucos revisitada para incluir aspectos positivos do medievo, como a origem das raízes nacionais e regionais, das fábulas e das tradições orais e escritas que teriam dado origem às modernas nações europeias.

Li o livro porque eu também quero mudar minha percepção sobre Idade Média. Eu, que dou aula para o ensino médio desde 2015, estou começando a me afeiçoar ao tema (acabei de assistir a série Tudors, comecei White Queen), mas até então eu achava tedioso passar pela matéria do primeiro bimestre do 1º ano, visto que ela começa com Feudalismo e termina com Grandes Navegações. Este ano, antes do Covid-19 paralisar as aulas presenciais, eu dei aula vestido de rei absolutista, de cavaleiro cruzado e de Martinho Lutero numa tentativa de tornar aquilo mais interessante para os alunos e para mim também. A ideia é essa, transformar ponto fraco em ponto forte, por isso estou buscando repertório sobre o período e por isso vi e resenho agora este filme que o Marcelo Cândido recomendou.

Excalibur (que por aqui ganhou o subtítulo IMPRESSIONANTE  de ‘A Espada do Poder’, devidamente suprimido) é uma narrativa clássica sobre a história daquele que certamente é o monarca mais conhecido da história, o Rei Arthur. Nomes como Camelot, Guenevere, Lancelot, Merlin, Morgana e os Cavaleiros da Távola Redonda fazem parte do imaginário da cultura pop mundial e praticamente todo mundo já esbarrou com eles uma vez ou outra na vida, seja em filmes, quadrinhos, músicas, etc. O que o longa do diretor inglês John Boorman faz é organizar as tramas mais conhecidas desse universo (que ainda carece bastante de fontes sólidas, baseando-se principalmente nos relatos deveras fantásticos de escritores como Gildas, Godofredo e Chrétien de Troyes) em pouco mais de 2hrs20min de projeção. É legal? Médio.

Excalibur - Cena 1

Boorman inicia sua epopeia mostrando como o Uther Pendragon (Gabriel Byrne), pai de Arthur, conheceu e apaixonou-se pela mãe do personagem, que até então era casada com um de seus maiores rivais. Para conseguir o amor de sua amada, Uther pediu para que Merlin (Nicol Williamson) ajudasse-o a infiltrar-se nos aposentos da moça com uma magia de disfarce, ao que o mago atendeu em troca de uma promessa: o primeiro fruto daquela união deveria ser entregue a ele. 9 meses depois, Merlin retorna e, como prometido, leva o recém nascido Arthur para ser criado e educado como o futuro rei dos bretões.

Um salto no tempo nos leva até a cena mais icônica da saga, que é a retirada da Excalibur da pedra. Athur (Nigel Terry), já adulto, consegue sacar a lendária espada da rocha na qual seu pai a havia incrustado, sendo reconhecido daí em diante como o rei que unificaria o território da futura Inglaterra sob o lema de “uma terra, uma lei”. Seguem-se cenas de batalhas grandiosas, a formação da célebre “Távola Redonda”, a construção de Camelot, o casamento de Arthur com Guenevere (Cherie Lunghi), o início de sua amizade com Lancelot (Nicholas Clay), o romance proibido entre Lancelot e Guenevere (que só não é o ‘chifre’ mais famoso da literatura porque temos o eterno caso Capitu/Bentinho/Escobar), a busca pelo Santo Graal e, finalmente, o embate entre Arthur e sua irmã, Morgana (Helen Mirren, lindíssima), que valeu-se de um relação incestuosa para conceber Mordred (Robert Addie), filho que deveria destronar Arthur e tornar-se o novo soberano dos bretões.

Excalibur - Cena 2

A ambientação, sem dúvidas, é o ponto forte aqui. Valendo-se de figurinos, cenografia e coreografias de batalhas que resistiram ao teste do tempo (lá se vão 40 anos!), Boorman apresenta lutas grandiosas que tornam-se ainda mais espetaculares quando olhamos para as produções atuais e vemos que, atualmente, o mesmo tipo de material tem sendo gerado quase que exclusivamente com o uso de CGI. Acredito que sejam essas referências visuais, aliadas a apresentação de ideias como o código de conduta dos cavaleiros, o misticismo dominante e a percepção de que o rei representa a vontade de Deus na terra (o tal do Absolutismo de Direito Divino teorizado por caras como Jacques Bossuet e Jean Bodin), que fizeram o historiador Marcelo Cândido indicar Excalibur como um bom exemplar de produto sobre a Idade Média, o que de fato ele é.

Minhas ressalvas ficam por conta da duração: achei puxado 2hrs20min de filme. Além de ser praticamente inviável exibi-lo na íntegra na sala de aula (com horários de 50min, eu levaria quase 2 semanas, mas isso não é bem um ‘defeito’, né), algumas partes claramente duram mais do que o necessário e poderiam ter sido melhor editadas, como o romance entre Lancelot e Guenevere e a busca pelo Graal. A extensão dessas subtramas, aliás, fazem com que, em comparação, o confronto final entre Arthur e Mordred pareça corrido, quase um anticlímax.

Foi bom ver Excalibur, tanto por fazer “check-in” em um clássico, quanto por reforçar o meu repertório sobre a Idade Média. Como material didático, porém, seguirei usando por ora o episódio 01 da primeira temporada da série (Des)Encanto, que é curto, bastante atual e trata de forma mais acessível e bem humorada os temas propostos.

Excalibur - Cena 3

Midsommar (2019)

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MidsommarAntes de comentar sobre o filme, que é bizarríssimo, algumas considerações sobre o título original e o subtítulo horroroso que ele ganhou aqui na terra brasilis. Midsommar é a palavra/termo sueco para “solstício de verão”. Numa consulta rápida, encontra-se que solstício é “o momento em que o Sol, durante seu movimento aparente na esfera celeste, atinge a maior declinação em latitude, medida a partir da linha do equador”. Há dois solstícios: o de inverno e o de verão, sendo que no segundo (que é o que nos interessa aqui) a duração do dia é a mais longa do ano. Até aqui tudo bem? Ok, o título então dá a entender que a trama girará em torno de um dia longo ou algo assim, correto? Não é uma dedução muita complicada, algo que demande um raciocínio complexo. Para manter o título original, porém, algum gênio tupiniquim decidiu acrescentar o subtítulo “O Mal Não Espera a Noite”, assim, sabe, para dar uma “dica” para o público sobre o que esperar de uma produção chamada Midsommar. Gostei muito dessa ideia, nota 0.

Veneno destilado, vamos ao filme. Num papo sobre cinema com um amigo, pedi uma dica de filme de terror/suspense para assistir e ele citou esse Midsommar. Como o cara é um profundo conhecedor de produções do estilo (vi podreiras como A Casa dos 1000 Corpos graças a ele), nem perguntei muito sobre o que se tratava, só procurei (não tem no Netflix, consegui via Torrent) e fui ver. O começo é meio monótono, mas bastante promissor: Dani (Florence Pugh) está numa pior. Tentando, sem sucesso, fazer contato com sua irmã, que lhe enviou um email com conteúdo potencialmente suicida, ela busca apoio no namorado, Christian (Jack Reynor), mas o cara não se mostra um porto seguro. Envolto em suas próprias questões (fumar maconha e programar uma viagem para o exterior com os amigos), Christian faz pouco caso das queixas de Dani até que o pior acontece: a irmã da personagem não apenas comete suicídio como, junto, mata os próprios pais. Como todo essa situação acontece em menos de 10 minutos de exibição e não é o foco da trama, não vi porque colocar aviso de spoilers, ok?

Seguimos. Gostei muito desse início. A tensão entre os personagens é gritante e fiquei bastante curioso para saber como a fragilidade psicológica de Dani seria encarada por Christian, que deixa bem claro em conversa com os amigos que pretendia terminar o relacionamento. Nesse instante, porém, a história dá uma guinada de 180° em sua ambientação e, mesmo que o conflito entre o casal continue como parte importante do roteiro, os novos elementos que são adicionados sobressaem-se e tornam Midsommar o que ele realmente é: uma experiência antropológica macabra pouco recomendada para quem busca produções mais convencionais de suspense/terror.

Midsommar - Cena 1

Mesmo com todo o seu aparente egoísmo, Christian não consegue terminar com Dani e convida-a para a tal viagem com os amigos, um passeio até a Suécia para conhecer a comunidade na qual um deles (Pelle, interpretado por Vilhelm Blomgren) cresceu. De longe, o lugar parece um paraíso: numa paisagem bucólica, homens e mulheres, adultos, crianças e idosos, reúnem-se para celebrar o solstício de verão em uma festividade que só ocorrerá novamente daqui a 90 anos. Eles cantam, dançam, comem, veneram o sol e fazem discursos, tudo isso potencializado pelo uso desenfreado de cogumelos alucinógenos. Josh (William Jackson Harper), o membro do grupo que fora até o local com a intenção de realizar uma tese de antropologia, fica maravilhado. Mark (Will Poulter), que só queria uma sueca para transar, não consegue esconder a frustração com aquele ambiente “espiritualizado”. Christian e Dani distanciam-se ainda mais, ele estupefato por todas as possibilidades do local, ela perdida no que parece ser o início de uma depressão.

Todo filme tem AQUELA cena que tu cita logo de cara quando vai falar a respeito (o bullet time do Matrix é um bom exemplo). No caso de Midsommar, não há dúvidas de que o momento mais impactante seja o “sacrifício da montanha”. Sacrifício? Sim, amigos, não demora muito para que aquele clima etéreo de paz, amor e contemplação revele o seu lado macabro. Segundo os costumes da comunidade, ao completar 72 anos, seus membros optam por sacrificarem a própria vida pulando de uma montanha, o que tanto seria uma espécie de oferenda para a natureza quanto lhes pouparia da decrepitude do fim. Reunidos, portanto, no pé da montanha, os personagens assistem o homem e a mulher mais velhos da comunidade pularem de encontro a um pedregulho. Nada prepara a gente para esta cena. Para falar pouco, tanto a cabeça da mulher quanto a perna do idoso são completamente destruídas pela queda, e a câmera do diretor exibe closes escandalosos da carne, miolos e ossos destroçados.

Midsommar - Cena 2

É como se o diretor Ari Aster quisesse, através de um choque psicológico brutal e irreversível, nos mostrar que estamos assistindo um filme de terror em plena luz do dia. Essa, aliás, é uma das grandes sacadas de Midsommar: ele troca o costumeiro ambiente noturno de produções do gênero por cenários ensolarados (o mal, como diz o brilhante subtítulo nacional, não espera a noite). Os monstros ou assassinos com poderes quase sobrenaturais são substituídos por pessoas comuns que tornam-se ameaçadoras “apenas” devido as suas religiosidades e opiniões. Invertendo ainda outro clichê do estilo, aqui é um homem, e não uma mulher, que é sexualmente abusado e aparece fragilizado em uma cena de nu frontal.

Em suma, não é um filme recomendado para quem procura por algo mais convencional, porque tanto a estrutura quanto o conteúdo focam o experimental e o bizarro. Há muita violência gráfica, principalmente na última meia hora das 2hrs27min projeção, mas o foco e a força de Midsommar é a inversão de estereótipos e a criatividade de seu diretor, que transita facilmente entre o gore (além da cena da montanha, faço menção ao ritual viking da Águia de Sangue, bem conhecido pelos fãs da série Vikings), o humor (a dança da Rainha de Maio é um suspiro entre uma e outra cena macabra) e o psicodélico (todas as emulações da realidade depois dos personagens usarem drogas). Ah, antes que eu me esqueça, os destinos de Christian e Dani são espetaculares. Valeu pela dica, Ismael!

Midsommar - Cena 3

 

Skinheads – A Força Branca (1992)

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Skinheads - A Força BrancaAssim que terminei a polêmica resenha do filme anterior (a quantidade de pessoas que comentaram sobre ela comigo em particular, alguns inclusive querendo link para o o material, foi impressionante 😆 ), folheei o “1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer” e procurei por algo mais “sério” para assistir. Foi lá que encontrei esse Skinheads – A Força Branca, obra prima do cinema australiano da qual eu nunca havia nem ouvido falar e que me sinto feliz tanto por ter assistido somente agora (visto que as questões que ele aborda são pontuais para tudo que está acontecendo atualmente no mundo) quanto por poder ajudar a divulgar.

A história segue as ações de um grupo neonazista comandado por Hando (Russell Crowe). Adorador de Hitler e defensor da ideia de que “os amarelos” (asiáticos, principalmente vietnamitas) estão destruindo a cultura de seus país e ameaçando sua existência, Hando e seus seguidores realizam ataques diários àqueles que eles elegeram como inimigos. Na cena que abre o filme, o diretor Geoffrey Wright nos dá uma boa amostra do que o grupo é capaz. “O que você está fazendo aqui? Este não é o seu país”, diz Hando antes de espancar um adolescente até a morte.

Se essa cena choca, o que vem na sequência (apesar de menos gráfico) não é menos ultrajante. Hando conhece e envolve-se com Gabe (Jacqueline Mckenzie), uma adolescente que está vagando pela noite sem muitas perspectivas depois de abandonar um namorado viciado em drogas. Após transarem em um quarto repleto de objetos nazistas (a parede do fundo, por exemplo, é coberta com uma bandeira do Terceiro Reich), Hando explica para Gabe as origens de seu ódio racial. Segundo ele, as pessoas ricas da Austrália encheram o país com “lixo humano”, asiáticos que são usados como mão de obra barata. Ele não quer ser um “escravo branco” em seu próprio país, ele quer que as pessoas saibam que ele orgulha-se de sua “história e de seu sangue de branco”. Na sequência, fechando a verborragia, ele saca um exemplar do Mein Kampf, um dos pilares da ideologia nazista, e lê um trecho que relaciona a decadência das “culturas nobres do passado” com a contaminação provocada pela “semente das raças inferiores”. “O sangue da raça deve ser preservado na sua pureza, a qualquer custo”. Gabe, que revela-se uma garota impulsiva, fútil e sem nenhum tipo de cultura, ouve isso tudo e sorri, impressionada. Quem tem um mínimo de bom senso/conhecimento, porém, é avisado pela contração involuntária do estômago que esse pensamento nacionalista/supremacista, além de repugnante, fatalmente levará à violência e destruição, e é exatamente isso que vemos em seguida.

Skinheads - A Força Branca - Cena 1

Depois de ser avisado que “um bando de amarelos” comprou o seu bar favorito da cidade, Hando reúne seus comparsas e parte o local para expulsá-los. Acontece, porém, que os asiáticos haviam organizado-se após a morte do garoto (aquela que abre a trama) e, dessa vez, eles estavam prontos para revidar. Hando e os demais skinheads, entre eles Davey (Daniel Pollock), um brutamontes descerebrado, até levam vantagem no início, surrando sem dó dois funcionários do tal bar, mas aí começa a surgir vietnamita de tudo que é canto e os neonazistas sentem na pele a violência que eles estavam acostumados a praticar. Aqui, a mágica do cinema acontece, nos permitindo vivenciar no ambiente relativamente seguro da arte sentimentos e sensações que não podemos praticar na vida real, seja por questões morais ou legais. Como é bom ver aquele discurso supremacista sendo enfrentado à altura! O grupo de Hando toma uma surra épica (alguns deles inclusive morrem), com direito a tijolada na cara e tudo mais, e só lhes resta fugir com o rabinho no meio das pernas. A partir daí, o grupo esfacela-se e o filme assume um tom menos de ação, mais dramático, para expor a hipocrisia e a podreira moral de Hando.

Russell Crowe, que sem dúvidas é um dos grandes atores de sua geração, dá vida a um protagonista intragável. Todos os símbolos da barbárie estão lá, desde o copo de leite que é bebido religiosamente ao acordar até as tatuagens com símbolos nazistas, mas o que mais me chamou atenção foi um diálogo em que ele dá bronca em um membro da gangue porque o cara demonstrou interesse em trabalhar servido ao exército. Hando acusa os asiáticos de invadirem seu país, contaminarem sua cultura e roubarem empregos dos nativos, mas ele mesmo não quer trabalhar. Durante a relativa 1h32min de duração do filme, aliás, o personagem não faz nada além de praticar furtos, embebedar-se, ser machista e brigar. É isso que define uma “raça pura”, uma “cultura nobre”?

Skinheads - A Força Branca - Cena 2

Claro que não. A ideia de nacionalismo e de raça enquanto fatores segregadores de povos nasce no século XIX na esteira da formação dos estados nacionais europeus modernos e na divulgação de teorias científicas, como o evolucionismo de Charles Darwin. A necessidade de definir uma identidade nacional baseada em fatores como língua, religião, símbolos (hino, bandeira) e ancestrais e acontecimentos históricos em comum levou à formulação de uma série de teorias que não só identificavam esses povos, mas que os comparavam entre si, como se uns fossem mais “evoluídos” do que os outros (o que recebe o nome de darwinismo social) e, portanto, estivessem mais aptos para conduzir o processo civilizatório do mundo. Nisso, temos caras como o inglês William Graham Sumner dizendo que o estado que promove igualdade favorece a sobrevivência do mais fraco, o que “leva a sociedade para baixo e favorece todos os seus piores membros” e o relativamente conhecido Francis Galton (também inglês) criando a chamada “eugenia”, umas espécie de limpeza racial que o estado deveria promover canalizando recursos públicos somente para os considerados “racialmente valorosos” e proibindo o casamento/esterilizando os “socialmente inúteis”, tudo isso visando evitar a miscigenação racial dos brancos com as “raças inferiores”, o que levaria ao seu enfraquecimento. É esse tipo de baboseira que atravessou o século e serviu de base para o surgimento do nazismo, é esse tipo de babaquice que fez ninho na cabeça oca de Hando.

Skinheads – A Força Branca, na sua metade final, explora as fraquezas teóricas do supremacismo através das contradições e da baixeza moral de seu protagonista, e revela o caminho robespierriano que aguarda os propagadores de ideias extremas. Apesar de seus quase 30 anos, é um filme bastante atual (não é bizarro que, no Brasil, um país que carrega a marca da miscigenação desde a sua origem, haja grupos neonazistas?) e merecedor da sua atenção, tanto pelas discussão que suscita quanto pelo fator entretenimento, que é dos maiores caso tu goste de ver a idiotice humana engolindo a si mesmo (e tomando tijolada na cara).

Skinheads - A Força Branca - Cena 3

Além do Vale das Ultra-Vixens (1979)

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ALÉM DO VALE DAS ULTRA-VIXENSPensei muito se valia a pena gastar tempo e energia para resenhar este filme. Acabei de retomar as atividades por aqui, de modo que o momento não é lá dos mais adequados para queimar os neurônios com produções pouco convencionais. Porém, obviamente, se vocês estão lendo este texto é porque a parte pervertida e aventureira que existe em mim venceu o embate contra o bom senso, logo vamos lá: este é, provavelmente, o filme mais próximo de uma produção pornográfica que já apareceu por aqui. 😆

É verdade que, olhando de 2020, seria um erro classificar Além do Vale das Ultra-Vixens simplesmente como um filme pornô. A produção é um produto fiel do exploitation, gênero cinematográfico pouco conhecido da atual geração mas que fez sucesso considerável na década de 70. A ideia do estilo era recorrer gratuitamente a elementos como sexo, violência, drogas e demais esquisitices com o intuito de chocar o público e gerar o interesse pelo longa através do sensacionalismo. Em comum, essas produções ainda tinham a ausência de grandes astros e o baixo orçamento. Atualmente, esse gênero, que já ocupou grande parte das telas de drive-ins americanos, resiste no circuito underground e em “homenagens” que diretores como Quentin Tarantino e Robert Rodriguez lhes prestam quando emulam o estilo ou resgatam atores que fizeram carreira naquelas produções, sendo o retorno da Pam Grier no Jackie Brown e o Projeto Grindhouse os exemplos mais conhecidos.

Foi por isso que coloquei Além do Vale das Ultra-Vixens para rodar. Juro pra vocês que a intenção não era assistir um filme pornô 😆 . Acontece que o diretor do filme, um cara safadão chamado Russ Meyer, hoje é considerado “cult”, tendo uma de suas produções (Faster, Pussycat! Kill, Kill), inclusive, sido relacionada no famoso guia de cinema “1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer” do Steven Jay Schneider. Alguns títulos dele, aliás, já apareceram por aqui, a saber: Motor Psycho, Cherry, Harry&Raquel!, e Up!. Mesmo dizendo isso tudo, porém, fiquei com receio de escrever porque, desta vez, há realmente muito pouco a ser comentado além da parte pornográfica do material. Os títulos que citei anteriormente, minimamente, tinham uma ou outra cena que fugia um pouco do erotismo (seja em termos de violência, seja em termos de bizarrice), o que praticamente não ocorre aqui. Isto posto, optei por fazer a resenha pelo desafio de “tirar um coelho da cartola”, e vou fazer isso da forma mais direta e crua possível, tal qual o faz a galera obscura que habita a sessão de comentários do Xvídeos.

ALÉM DO VALE DAS ULTRA-VIXENS - CENA 1

A trama, como o narrador repete insistentemente, se passa em Small Town, uma cidade pequena (duh!) e comum dos Estados Unidos. Ali, pessoas que poderiam ser os seus ou os meus vizinhos vivem suas vidas comuns, lutando para colocar o pão na mesa e para ter alguma felicidade conjugal. Há um casal, porém, que está passando por algumas… dificuldades. “Prontos? Abram-se, portas do inferno!” A questão aqui é que o bem dotado Lamar (Ken Kerr) só consegue ter prazer sexual quando sodomiza a mulher, a fogosa Lavonia (Kitten Natividad). Sem saber como lidar com esse grande problema (!!!), Lavonia passa a evitar o marido, saciando o seu desejo incontrolável por sexo com praticamente todos os outros homens de Small Town. Acontece, porém, que ninguém em Small Town tem as mesmas “qualidades” de Lamar, logo a personagem tenta curar o marido de sua tara pela porta dos fundos para devolver a felicidade ao seu lar.

Resumindo, é um filme em que uma mulher quer convencer o marido a desistir do sexo anal. Uma hora e meia disso. Nas poucas cenas em que Lavonia e seus seios enormes não está pulando em cima de um cara mais horroroso do que o outro (tem um caixeiro viajante que é um monumento a feiúra), ela tenta fantasiar-se de uma prostituta mexicana com nome de Lola Langusta para “curar” Lamar. Nessa hora, numa das poucas cenas dignas de nota pelo humor trash, o narrador zomba de Lamar, falando que “um homem com um QI de 37 não seria capaz de reconhecer a própria mulher se ela colocasse uma peruca e forçasse um sotaque espanhol”. O pior de tudo é que o narrador está certo: mesmo jogando um copo de cerveja na cara do marido, Lavonia não é reconhecida por ele. Lamar vacilão.

ALÉM DO VALE DAS ULTRA-VIXENS - CENA 2

Lavonia, no entanto, não desiste. Lavônia é incansável, na cama e em seus propósitos. Entre uma e outra pulada de cerca, ela ainda leva Lamar para consultar com um dentista que é terapeuta de casais (!!!) e para tentar uma terapia espiritual com uma radialista da voz sexy. A ida ao dentista é, sem sombra de dúvidas, o ponto alto da loucura por aqui: o cara revela-se homossexual e, enquanto Lavonia promove uma briga de aranhas com a secretária dele, Lamar precisa escapar das investidas do sujeito escondendo-se em um armário. Piada pronta, o cara pega uma motosserra (!!!) e começa a retalhar a porta do móvel, dizendo: “Hey, Lamar! É hora de sair do armário!”. Sangue de Jesus tem poder! A radialista, que é peitudona tal qual todas as mulheres presentes nos filmes do Russ Meyers, transa com Lamar e transmite o ato ao vivo (!!!) para todos os seus ouvintes, pedindo para que eles enviem grana para ela durante o processo. Espero, sinceramente, que o Silas Malafaia nunca assista esse filme.

Além do Vale das Ultra-Vixens é ruim demais. Mesmo considerando a proposta do exploitation, o humor dele é ruim e as cenas de sexo são repetitivas. Qualquer filme do Russ Meyer que citei aqui, até o fraquíssimo Cherry, Harry&Raquel é mais indicado caso a intenção seja conhecer o gênero. Ah, caso você também tenha tido essa curiosidade, o “Vixen” do título refere-se ou a “raposa fêmea” ou a “megera”, que é uma mulher perversa, ruim. Nada a ver, portanto, com a Vixen que produz entretenimento adulto atualmente, produtora que conheço só de ouvir falar e da qual eu nunca assisti nada.

ALÉM DO VALE DAS ULTRA-VIXENS - CENA 3